quinta-feira, 22 de março de 2012

Orgulho de ser Acaraense.

Eu estava na Praça da República, ontem de manhã, para dar aquela vasculhada básica na banca de revistas. Prometi à mulher que voltaria logo. Aí esbarrei, ao lado do Waldemar Henrique, com o projeto Música para Todos, patrocinado pela Vale. No palco, sob o céu nublado, convivendo com um solzinho generoso, o violino matinal e sublime do Luiz Pardal, mais o contrabaixo de Adelbert Carneiro, os teclados de Jacinto Kawage e a bateria fulminantemente terna de Edivaldo Cavalcante.

Final da apresentação, já voltava para casa, rigoroso cumpridor da minha palavra, quando o amigo Sodré literalmente me arrastou, não para o Arraial do Pavulagem, mas para uma inocente cerveja. Que logo se multiplicou. Minha mulher também se multiplicou no celular, cobrando-me a palavra. Entre aceitar o convite para cair no carnaval da Cidade Velha ou vir, doméstico, almoçar, ligaram-me do jornal: o Benedito Nunes morreu.

Respirei fundo, passava de uma da tarde, mas o clima, ameno, convidava à vida. Voltei para casa: um café forte, um banho gelado, e pronto, estaria aqui escrevendo sobre o nosso Bené. Mas, para variar, a cidade toda estava sem água. Ao menos o combustível do café não me faltaria.

Bené (mas eu sempre o chamei de professor) se foi no dia do aniversário de uma das minhas filhas. Nessa mesma manhã de domingo, antes de sair para a praça, li sobre a morte do gaúcho Moacyr Scliar, um escritor que me era caro, com quem conversei duas ou três vezes, incluindo uma longa entrevista no Rio de Janeiro. Antes, no meio da semana passada, foi-se Alonso Rocha, primo do Max Martins, e da geração do Bené.

O que dizer, em particular, sobre o amigo Benedito Nunes? Ah, tanta coisa. Houve um tempo em que cheguei a ser razoavelmente assíduo na sua casa. Isso há pelo menos umas duas décadas. De todos aqueles momentos, recordações agradáveis. Quase sempre à mesa, entre comidinhas: Bené um glutão, ainda que glutão formiguinha. Maria Sylvia, Angelita, Andrea, Nelson Sanjad, Lúcio Flávio, Chico Mendes, Max, Maria Eugenia Boaventura, Gilberto, Lilian... Tanta gente.

Não esqueço um dia em que assistimos, não lembro se no quarto do Bené, àquela entrevista com a Clarice Lispector, a última que ela concedeu, à TV Cultura. Na época, era uma raridade. Uma Clarice solene, misteriosa. Quase trágica. Enfim, Clarice. Hoje está no Youtube. Entre os presentes, minha primeira filha, pequeninha, hoje com quase trinta anos. Seu nome: Clarice. Ela ficou impressionada ao ver a escritora que já sabia ser a inspiração de seu nome.

Uma das últimas vezes em que estive na casa do Bené, na “Estrella”, foi na gravação de um documentário sobre o Haroldo Maranhão, dirigido pelo Nélio Palheta, para a TV Cultura. Compondo o arco dos entrevistadores, em torno do homenageado, eu, Bené, Lúcio, Max Martins e Alonso Rocha. Na mesa ao lado, Mário Faustino, emoldurado. Naquele dia, cheguei um tanto quanto nervoso. Tentei não transparecer. Já havia entrevistado o Haroldo diversas vezes, outras tantas conversado com o Bené, mas agora, sob a mira de uma câmera, que não gosto, a luz forte me incomodava. Dez minutos depois, estava à vontade, como se fosse um Elias Bonner (ainda vou ter meu programa de TV, só para vencer o desafio). Foi um dia intelectualmente radiante. Está gravado aí, nos arquivos da Cultura. Podiam repassar.

Há outros capítulos, de que tomei parte (poucas vezes, é verdade), presente naquele encantador endereço da Estrella. Das vezes em que fui lá, quando eu coordenava edições especiais da editora Cejup, como a das obras reunidas do Max, da tradução do Saint-John Perse (assinada pelo Bené e pelo Michel Riaudel). Aliás, entrevistei o franco-paraense Riaudel lá na Estrella.

Lembro, muito, muito tempo atrás, vim a pé, no mocotó mesmo, da Cidade Nova (tinha uma namorada lá), tomando umas e outras pelo caminho, desde a BR. Quando alcancei a Estrella, fui até a porta do mestre, toquei a campainha e de lá lhe ergui um brinde. Desconfio que ele nunca soube que era eu à porta – quer dizer, não era bem eu.

Duas, três, quatro ou dez vezes, talvez mais, estive lá no escritório que ficava à direita de quem entra, Benedito me mostrando os livros que havia trazido de sua mais recente passagem por Paris. Tenho um registro, uma foto dessas ocasiões, eu com uns duzentos volumes no colo, e o Bené me passando mais um.

Bem, já escrevi um bocado (acho que é o café forte fazendo efeito), a água ainda não voltou, o almoço é uma promessa, e sequer falei dos livros, da célebre biblioteca beneditina. Nossa, esqueci o nome da biblioteca do Bené, com suas divisões. Não faz mal. Sequer, também, lhe falei da vasta e magnífica obra. Nem vou falar. Outros falarão bem mais e melhor. Tenho quase todos os seus livros gravitando no meu entorno.

Lembro que uma vez cheguei e lhe falei: professor, desisto, não consigo entrar no universo do Heidegger, filósofo alemão que tanto lhe frequentou os estudos, os livros. Até estou estudando alemão, disse-lhe, que em português não consigo entender bulhufas. Sabiamente, o professor disse que eu deixasse para lá, dedicasse meu tempo a outros autores. Neste caso, realmente, filosofar com Heidegger, só em alemão.

Na sexta-feira passada pensei em Benedito Nunes, ao entrar, pela primeira vez, no auditório que leva seu nome, na UFPA, para a formatura da filha que ontem fez aniversário, no dia da morte do nosso filósofo. Pensei, puxa, faz tempo que não falo com o Bené. Senti uma tristeza. Não o sabia internado.

Haroldo Maranhão, Max Martins e Benedito Nunes (tendo Mário Faustino num plano mais distante, porém marcante). Poderia citar outros, como Francisco Paulo Mendes. Ou Ruy Barata. Paulo Plínio Abreu. Mas os três primeiros se completavam. Haroldo nos contos e romances, Max na poesia, Bené na filosofia, na ensaística, na crítica. Juntos compuseram o mais alto momento da nossa criação literária, incontornável galáxia, esta sim imortal (sem que nenhum de seus três vértices se submetesse a academias, a não ser aquela, de poltronas austríacas e patronos ilustres, a que Max, antecipando-se a Graça Aranha, gritou um Morra a Academia!), das letras geradas às margens do Acará.

Em 1990 fiz a melhor das minhas entrevistas – com Haroldo Maranhão, que lançava sua obra-prima, “Cabelos no Coração”, protagonizada pelo vertiginoso acaraense Filippe Alberto Patroni Martins Maciel Parente, o Doutor Patroni. O Acará, para quem não sabe, é a pátria dos genialmente destemidos que mais alto ergueram o nome de sua nascença. Entre os vivos, agora, dou exemplo de acaraense: Lúcio Flávio Pinto.

Pois então perguntei ao Haroldo, o que é ser um acaraense, como Patroni. Ele respondeu: “Haverá mais acaraenses, necessariamente não nascidos no Acará. Acaraense é acaraense, não é da gente do Pará. Quem quiser ou puder entender, entenda. Uma coisa é ser acaraense, outra é ser paraense. Minha maior ambição é vir a ser acaraense, se puder me tornar um. Benedito Nunes não se deu conta mas é acaraense dos puros. Ignoro o que acontece por lá. Devem ser as águas, a floresta, os igarapés, alguma coisa que circula no ar. Não sei. Pelo sim, pelo não, aconselho as grávidas a irem parir no Acará.” Não sei se o Bené chegou a se dar conta de ser acaraense. Mas agora, como o Doutor Patroni, e juntando-se aos diletos Haroldo e Max, Bené, o Doutor Bené, é acaraense da gema, ontem, hoje e para sempre. (Elias Ribeiro Pinto, Diário do Pará)

Um comentário:

  1. Conheça o portal www.youtube.com/bandaencontros é do Acaraense Ruben Amoêdo.

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